Educação

A educação como prática de formação política para participação democrática e exercício da cidadania crítica

Sabemos que o processo educativo permeia toda vida do ser humano. Desde o nascimento, a aprendizagem é uma necessidade de sobrevivência, uma capacidade que nos permite adaptar ao ambiente em que vivemos, uma possibilidade de desenvolver a inteligência e, também, uma possibilidade para transformar a realidade ou recriar culturas. A formação humana é um processo muito mais antigo e amplo do que o aprendizado que recebemos na família, escola ou universidade. Entretanto é a educação formal que tem a função de preparar os sujeitos para o convívio social e a participação nas decisões que envolvem suas necessidades e a comunidade. A Constituição brasileira define três objetivos principais para a educação: desenvolvimento humano e cultural; formação para o exercício do direito de cidadania; preparação para o trabalho. Todavia, esse último objetivo frequentemente é supervalorizado em detrimento dos outros. Cada vez mais as abordagens humanistas e críticas na educação têm sido silenciadas em escolas e universidades, perdendo espaço para o discurso das competências técnicas para o trabalho (alienado). Precisamos repensar a educação como uma prática de formação política capaz de preparar as pessoas para uma participação democrática verdadeira e o exercício crítico da cidadania. Para isso é urgente resgatar as premissas da ação dialógica e a pedagogia política proposta por Paulo Freire. Somente no diálogo, participando das conversas sobre histórias e lutas do local onde vivem, os estudantes serão capazes de compreender a natureza política das disputas em sua comunidade e participar de assuntos públicos mais amplos.

Infelizmente o que temos visto acontecer na educação é que a dimensão política está sendo eliminada dos currículos escolares e as disciplinas têm se limitado à abordagem conteudista. Isso não ocorre por acaso e levanta a questão sobre quem tem o poder de definir o que pode, ou deve, ser aprendido. O discurso neoliberal já não se restringe somente à economia, mas avança ferozmente contra a educação e a cultura, que estão cada vez mais sujeitas ao controle de ideias e ao autoritarismo crescente em todo mundo. Essa ameaça também é visível na emergência de uma cultura anti-intelectual que ridiculariza o ideal de uma educação pública de qualidade, capaz de formar os estudantes para a vida, mas também para o exercício de uma cidadania crítica. Existem sinais visíveis desse autoritarismo na educação por todos os lados. Vão desde livros proibidos na educação básica, passando pelo controle e restrição da liberdade no trabalho de professores, acusados de fazer doutrinação ideológica por debater questões sociais relevantes, até uma perseguição aos próprios estudantes, que são frequentemente atacados quando trazem para o contexto escolar ou universitário as histórias e lutas dos movimentos sociais, principalmente no que se refere às pautas interseccionais atuais, transversais na luta de classes, como raça, gênero, etnia e sexualidade.

O que antes era impensável em termos de ataques à educação tornou-se algo cotidiano e a ignorância politica é agora elogiada como uma virtude pelos grupos de direita. A forte polarização ideológica, transformada em espetáculo nas redes sociais, tem levado muitos professores a eliminar esses debates em sala de aula. A situação se agrava quando constatamos que em muitas instituições já não existem mais associações de alunos, centros acadêmicos ou grêmios estudantis. Na maioria das vezes a participação dos alunos e seus familiares é restringida e limita-se a assinar ingenuamente documentos que fraudam a participação legítima da comunidade escolar. A falta de participação é falsamente justificada como falta de interesse das novas gerações pela política, ou como apatia generalizada da sociedade frente ao cinismo e desfaçatez dos representantes políticos. A cidadania é reduzida aos termos de uma suposta lealdade à Nação. Não há uma reflexão mais aprofundada sobre as relações entre cidadãos e Estado. O autoritarismo voltou-se contra os princípios da própria democracia, distorcendo a linguagem moderna de autonomia, solidariedade, liberdade e justiça. Paradoxalmente, hoje em dia um cidadão crítico e consciente já não é mais alguém que trabalha somente para a glória da nação. O exercício de uma cidadania crítica no mundo contemporâneo se caracteriza por um sujeito consciente dos problemas globais, que defende os direitos humanos, que se preocupa com a questão ambiental, que defende a participação ativa na construção da democracia e que se preocupa com a redução das desigualdades sociais, culturais e econômicas, bem como todas as interseccionalidades que deterioram o bem estar social em um nível local. Fica explícito que a capacidade dos alunos para desenvolver um raciocínio crítico, estético e moral não pode ser desenvolvida sem uma formação política. Mas como poderão exercer a cidadania se não participarem de debates coletivos e se os embriões de movimento estudantil continuarem abortados com o silenciamento de suas vozes?

Mesmo assim, os governos continuam a dar mais prioridade à aquisição de competências técnicas para o trabalho, sempre com justificativa do desenvolvimento e crescimento econômico. A educação segue reproduzindo uma noção de individualismo e empreendedorismo que nutre grande desdém pela participação coletiva e pela própria vida em comunidade. Reforça assim a ideia de que o compromisso social não é digno de confiança. Uma linguagem que está escrita no discurso da economia e dos valores de mercado, mas não na ética. Nessas circunstâncias, a superficialidade do ensino torna-se um trunfo, não um problema. As noções de solidariedade e justiça social são apagadas, juntamente com a desvalorização de pessoas, grupos e instituições que defendam uma formação crítica e sensível, engajada com o compromisso de mudança social. Os valores democráticos e as esperanças partilhadas foram substituídos por uma noção regressiva de hiper individualismo, com valores egocêntricos e uma visão de produtividade e meritocracia. As formas de imaginar a sociedade por meio de um ethos coletivo fragmentaram-se e dissolveram-se num movimento de antipolítica marcado pela linguagem de liberdade individual dos cidadãos acríticos. Esse processo de despolitização levanta algumas questões: como defender, nesse contexto educacional, uma concepção democrática da política? Como proporcionar o aprendizado das dinâmicas de participação coletiva necessárias ao diálogo político? Como a educação pode transformar a realidade sem mobilizar as forças sociais, coletivos e massas e sem formar, desde as escolas, esses agentes da mudança?

Precisamos resistir aos ataques conservadores repensando e reivindicando a educação como um projeto social, moral e político enraizado no objetivo de empoderamento e emancipação de todas as pessoas, especialmente se não quisermos negligenciar o papel da escola como uma esfera pública democrática. A educação para o empoderamento social é aquela que convida os alunos a pensar para além de si mesmos. Abraça o imperativo ético de que eles cuidem também dos outros. Aprende com as lições da história e reconhece a dinâmica de luta dos movimentos sociais. Tem o desafio de educar os estudantes para que se tornem sujeitos da história, capazes de transformá-la por meio da política e das diversas outras formas de luta que envolvem relações poder. Se os professores desenvolverem um projeto político e pedagógico baseado na verdade, na expansão da criatividade coletiva, na imaginação cívica e na prática da liberdade certamente a democracia não será destruída por ímpetos autoritários e nem se instalará facilmente nenhum tipo de ditadura. Precisamos resgatar o trabalho docente como uma possibilidade emancipatória e garantir condições que permitam aos estudantes e suas famílias pensar contra a corrente, se constituírem como cidadãos críticos, empenhados na resolução dos conflitos sociais.

Uma educação com esses princípios precisa combinar uma linguagem de crítica sobre a realidade atual com uma visão de futuro baseada na esperança de transformação. Precisa fomentar a formação política, reavivar o ativismo social e se engajar na luta por uma noção de cidadania crítica, compartilhada entre os diversos segmentos e atores sociais. A formação política está relacionada com a capacidade de mobilização por meio de um projeto político e pedagógico que busque mudanças ambiciosas nas condições de vida das pessoas e que garanta, não só os direitos individuais, como também direitos coletivos mais amplos. Quando as escolas convidam a comunidade ao entorno para conversar sobre a política que envolve seu cotidiano, o resultado é que não só os alunos, mas toda a sociedade, se tornam críticos às desigualdades e se organizam na luta por seus direitos. Assim é possível aprender que as disputas de poder podem ser negociadas por meio do diálogo, e que os conflitos podem gerar ações coletivas no campo da política, o que certamente exige tomar partido. Exatamente por isso não podemos admitir uma “escola sem partido”, pois não tomar partido diante das injustiças sociais e dos ataques à democracia é um mecanismo reacionário e conservador para anular a cidadania dos estudantes e controlar o potencial revolucionário das escolas. As instituições de ensino não podem se isolar da sociedade e continuar a prender o pensamento dos estudantes em grades curriculares e dispositivos de disciplina. Se as escolas tentarem censurar a política e negar o diálogo sobre problemas que chegam a partir do mundo exterior, elas serão apenas instituições de reprodução e controle social. Queremos escolas para domesticar e docilizar os estudantes ou escolas que instiguem o pensamento, despertem a curiosidade e formem seres humanos sensíveis e cidadãos responsáveis?

Não há democracia sem um sistema educativo capaz de despertar a consciência, desafiar o bom senso e criar modos de análise nos quais os estudantes vivenciem e reconheçam lutas comunitárias concretas que lhes permitam repensar as condições que moldam suas próprias vidas. Essa abordagem oferece a oportunidade de voltarmos a trabalhar com movimentos de base e de envolver a escola nas críticas à concentração de poder, injustiças econômicas e reivindicações de diferentes grupos socioculturais. É por isso a necessidade de que escolas e universidades se constituam em espaços críticos e abertos para a participação comunitária, intencionalmente concebidos para incentivar o debate, melhorar a liderança nos grupos populares e organizar estratégias para ações culturais coletivas. A capacidade de articular necessidades sociais, exigências culturais e problemas complexos depende de um aprendizado que envolve o diálogo e a participação na tomada de decisões. A capacidade de estabelecer consensos e articular coletivos nas disputas políticas depende da vivência de um ambiente onde os sujeitos possam experimentar, por vezes pela primeira vez, a importância da participação cidadã, como agentes críticos capazes de exercer algum nível de controle sobre suas próprias vidas e também sobre sua comunidade.

Se quisermos que as escolas ensinem que os conflitos sociais podem ser melhor solucionados pela política do que pela força e violência, precisamos atuar na cultura política dos estudantes. Nessa perspectiva, a educação precisaria emergir das lutas e dos movimentos sociais que criticam a ordem estabelecida, pois é inegável que essa atividade possui considerável complexidade para estimular debates, além de um enorme potencial formativo. A participação nas questões comunitárias pode ser então um laboratório de práticas para a vivência política dos estudantes. Essa ativação do espaço, como diria o geógrafo Milton Santos, pode criar um “território vivo”. Movimentando essas redes e criando novos fluxos, a escola, ou a universidade, teria potencial para proporcionar aos educandos uma prática concreta na democracia participativa. A capacidade de diferentes pessoas se unirem, e criarem um espaço organizado de conversa sobre questões relevantes para a vida delas, possui um grande potencial que professores não deveriam desconsiderar.

Uma educação transformadora precisa proporcionar um ambiente que seja intelectualmente rigoroso, permitindo ao mesmo tempo que os alunos deem voz às suas experiências e compartilhem aspirações ou sonhos. Precisa ser um espaço protetor e corajoso, no qual os alunos sejam respeitados em sua subjetividade, mas também capazes de falar, escrever e agir coletivamente a partir um julgamento bem informado. Precisa ser um lugar de ligação com a sociedade em geral, abordando questões atuais e debatendo políticas importantes. Precisa também proporcionar condições para que os alunos aprendam um sentido de compromisso social alinhado aos valores de justiça e liberdade para todos, todas e todes. Por fim, precisa também proporcionar aos educadores condições adequadas de trabalho, remuneração compatível com sua responsabilidade e função social, além de uma maior autonomia sobre seu processo de trabalho. É uma questão crucial para a sociedade contemporânea o desenvolvimento da cidadania crítica e a construção de uma democracia participativa capaz de garantir uma melhor qualidade de vida. Para isso precisamos realmente repensar a educação como prática de formação política.

Fonte: Diploma Tique

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