Por que papa Francisco nunca voltou à Argentina em 12 anos de papado

Jorge Bergoglio deixou a Argentina em 2013 para se tornar papa e nunca mais voltou ao país — Foto: AFP

Quando o então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio, deixou sua cidade para participar do conclave do Vaticano que elegeria o sucessor de Bento 16, certamente não imaginava que seria a última vez que pisaria em solo argentino.

Aos 76 anos — um ano a mais do que bispos costumam ter quando apresentam sua renúncia ao papa — ele estava longe de ser o favorito para preencher o cargo então vago, de acordo com analistas.

“Quando ele deixou Buenos Aires para o Conclave, ele parecia um tanto triste; estava preparando um quarto para sua aposentadoria no Lar dos Padres, no bairro portenho de Flores”, disse Guillermo Marcó, padre da Arquidiocese de Buenos Aires, ao jornal argentino Clarín.

Entretanto, para sua surpresa — e a do mundo inteiro — o clérigo argentino de perfil conciliador prevaleceu, dando início a um papado que duraria 12 anos.

Gustavo Vera, um ativista contra o trabalho escravo e o tráfico de pessoas que era amigo próximo de Bergoglio, disse à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, que o pontífice imaginava um papado muito mais curto.

“Ele pensava que seriam quatro anos, por causa da idade, ou porque talvez tivesse que abdicar devido a um derrame ou algo assim”, disse o líder da Fundação La Alameda, que se tornou amigo do religioso quando ele ainda era arcebispo.

“Ele as escreveu com a própria caligrafia, elas foram digitalizadas e enviadas para mim”, revela Vera.

Nessas cartas, o pontífice sempre demonstrou interesse pelo que acontecia em seu país de origem.

“Às vezes ele comentava sobre futebol, às vezes sobre tango, às vezes sobre eventos culturais”, diz Vera, que afirma que o Papa acompanhava as notícias argentinas “detalhadamente”.

“Francisco manteve sua conexão com a Argentina o tempo todo. Nesses 12 anos, em sua agenda sempre havia um grande número de argentinos, que compareciam a audiências, que assistiam ao Angelus [oração feita pelo papa junto aos peregrinos na Praça de São Pedro aos domingos], que tinham audiências pessoais. Seu coração sempre esteve na Argentina, de alguma forma”, afirma.

O papa era um amante de mate, tango e futebol — Foto: Getty Images/BBC

O papa era um amante de mate, tango e futebol — Foto: Getty Images/BBC

Por tudo isso, uma das coisas mais impressionantes sobre o papado de Francisco é que em 12 anos ele nunca visitou seu país de origem.

Francisco viajou para quatro dos cinco países que fazem fronteira com a Argentina: Brasil — sua primeira viagem ao exterior, três meses após assumir o cargo, em 2013 — Bolívia e Paraguai em 2015 e Chile em 2018.

Ele também viajou para outros países latino-americanos, incluindo Cuba, Equador, México e Peru.

Por que, então, ele não foi para seu próprio país?

A resposta revela a relação complicada que Francisco tinha com sua terra natal, onde muitos o amavam e hoje choram sua morte, mas outros tantos o consideravam uma figura controversa.

Um vínculo que foi se deteriorando à medida em que passava o tempo e aumentava a decepção e até mesmo o mal estar sentidos por muitos, diante do que consideravam uma rejeição da principal figura do país no cenário internacional.

Não podemos esquecer que o povo argentino é famoso por seu ego, algo que o próprio pontífice costumava zombar, com seu grande senso de humor.

Queda na imagem positiva

A verdade é que, embora a dor da partida de Francisco agora predomine, sua relação com seu povo se enfraqueceu ao longo dos anos.

O orgulho inicial sentido pela maioria dos argentinos após o anúncio de que um compatriota argentino seria o primeiro papa latino-americano deu lugar ao desencanto ao longo dos anos.

Foi o que revelou uma pesquisa do Pew Research Center, que mostrou que a imagem favorável do pontífice em seu próprio país recuou de 91% em 2013, para 64% em 2024, com um aumento acentuado nas opiniões negativas, que subiram de 3% para 30%.

Dos seis países latino-americanos pesquisados, a maior queda na percepção favorável foi registrada na Argentina.

Francisco visitou o Chile e o Peru em janeiro de 2018, mas disse que não foi à Argentina e ao Uruguai porque muitos moradores locais estavam de férias — Foto: Getty Images/BBC

Francisco visitou o Chile e o Peru em janeiro de 2018, mas disse que não foi à Argentina e ao Uruguai porque muitos moradores locais estavam de férias — Foto: Getty Images/BBC

Alguns compatriotas de Francisco ficaram decepcionados com as suas políticas, algo que também ocorreu em outras partes do mundo.

Os mais conservadores o acusaram de minar tradições históricas que consideravam sagradas, enquanto os reformistas esperavam mudanças mais profundas.

Mas a desilusão de muitos argentinos com o papa transcendeu questões religiosas ou ideológicas.

Inclusive, não tinha relação com um tema que gerou polêmica quando ele assumiu: as críticas sobre sua atuação durante o último regime militar argentino (1976–1983), quando era superior da congregação jesuíta naquele país.

O motivo central da decepção com Francisco parecia estar em outro lugar.

E, ao contrário de outras figuras internacionais famosas que o país produziu, como Maradona, Messi ou a rainha da Holanda (Máxima Zorreguieta Cerruti, esposa do rei Guilherme Alexandre), Bergoglio deixou a Argentina para nunca mais voltar.

Toda vez que lhe perguntavam sobre uma possível viagem, Francisco dava respostas vagas.

O papa Francisco fez 40 viagens e visitou mais de 60 países. Ele costumava falar com a imprensa durante suas viagens de avião — Foto: EPA/BBC

O papa Francisco fez 40 viagens e visitou mais de 60 países. Ele costumava falar com a imprensa durante suas viagens de avião — Foto: EPA/BBC

Uma hesitação que muitos de seus fiéis locais acharam difícil de entender.

“A primeira coisa que qualquer atleta faz depois de ganhar um prêmio de nível mundial é voltar ao seu país para compartilhá-lo com seus compatriotas. Bergoglio não conseguiu voltar ao seu país nenhuma vez. Isso diz tudo”, disse um usuário no X (antigo Twitter).

“Ele nunca quis voltar ao seu país, é como se Jesus nunca tivesse pregado em Jerusalém”, opinou outro.

A ausência do pontífice foi sentida de forma mais aguda nos últimos anos, já que a Argentina enfrentou uma de suas piores crises econômicas, com inflação anual chegando a quase 300% e um aumento acentuado da pobreza, especialmente entre as crianças.

“[Francisco] falou com as pessoas de uma forma que todos amaram e entenderam, mas sinto que ele se esqueceu um pouco do nosso país”, disse Francisca Campos, de 68 anos, à agência de notícias AP.

Ela foi uma das pessoas que se reuniram na catedral de Buenos Aires para rezar pela saúde do papa em fevereiro, durante sua última internação hospitalar.

Refém da polarização

Segundo Vera, o verdadeiro motivo da ausência de Francisco foi que ele queria evitar que sua presença fosse usada para fins políticos.

O “racha” a que ele se referia é a divisão que existe há décadas na Argentina entre peronistas e antiperonistas (ou, nos anos mais recentes, entre kirchneristas e antikirchneristas).

Há uma crença generalizada no país de que Francisco estava entre os primeiros, algo que ele mesmo negou no livro “O Pastor”, publicado por ocasião de seu 10º aniversário como papa, em 2023.

A explicação não convenceu os argentinos de centro-direita, incluindo os apoiadores dos dois últimos presidentes não peronistas do país, Mauricio Macri e Javier Milei.

Antes de assumir o cargo, o atual presidente chegou a chamá-lo de “a representação do mal na Terra”, uma observação pela qual ele mais tarde se desculpou em privado.

Alguns de seus compatriotas apelidaram o pontífice de “Francisco K” nas redes sociais, devido à sua suposta proximidade com a ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner.

“Não perdoo o papa por ter se encontrado e tirado fotos com políticos condenados pela Justiça”, diz Hugo, de 72 anos, um argentino católico fervoroso e fervorosamente antikirchnerista, referindo-se às duas sentenças de corrupção contra Kirchner e outras autoridades de seu entorno que também foram recebidos pelo pontífice.

Fonte G1RN

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